Xavier

Textos anteriores

“ Uma obra de arte é constituída por dois elementos: o interior e o exterior.
O elemento interior, quando tomado individualmente, representa a emoção da alma do artista. Na verdade, esta emoção é capaz de suscitar na alma do espectador uma emoção correspondente. Enquanto a alma estiver ligada ao corpo, este apenas poderá, regra geral, receber vibrações por intermédio dos sentimentos. O sentimento constitui, portanto, uma ponte que conduz do imaterial para o material ( artista ) e do material para o imaterial ( espectador ). Emoção - sentimento - obra - sentimento - emoção “.
Wassily Kandinsky

O DESLUMBRAMENTO DA COR E DO RISCO

Vivendo na Ilha do Príncipe, lugar onde nada chegava, Xavier teve como único estímulo a Palavra dos amigos do pai que gabavam os desenhos que, desde criança, fazia. O gosto pelo desenho ter-se-á enraizado no seu jeito de comunicar tendo—o levado, aos 23 anos e já em S. Tomé, a produzir e a expor um trabalho gráfico alusivo ao cortejo histórico do “ V Centenário da Descoberta das Ilhas “. Esse facto determinou o salto para Portugal onde, com uma bolsa do Governo, obteria uma garantia para o futuro, isto é, não se ficaria pela expressão ingénua dos pintores de S. Tomé e Príncipe.
Chegado ao mítico Continente trazia na bagagem as fundas raízes do isolamento dos ilhéus, a lonjura infinita dos espaços envolventes, a intensidade da luxúria da Natureza verdejante, a vida e o calor africanos. Vinha às escuras, com a curiosidade ávida de quem tudo quer saber e conhecer. Deixando-se guiar pelo instinto, optou por estudar na cidade que lhe foi mais aconchegante, tendo feito os estudos académicos nas Belas-Artes do Porto, onde não teve a sorte de encontrar Mestres, mas que lhe terá dado alento bastante para a busca de si próprio através da Pintura. Várias foram as fontes que lhe saciaram anseios e as influências em que se moveu, prosseguindo num caminho de sucessivas descobertas, até ter encontrado a sua particular linguagem.
Quando interrogado, na intimidade do seu atelier carregado de sinais e de estigmas onde a cor e o risco dominam, Xavier concentra-se. O seu discurso é pausado e seguro, fluindo entre a mancha e a linha, mostrando o seu envolvimento com o espaço delimitado em circuitos de agitação urbana. Para ele tanto as formas quanto as cores do seu trabalho completam-se num envolvimento único criando situações de paisagem citadina, utilizando os elementos dum dizer simbólico que não sabe descodificar, mas que conota com o movimento gestual que a vida quotidiana encerra.
Se é certo que, segundo o pintor, se pode filosofar quanto se queira sobre a pintura, já que o artista não tem que ter necessariamente consciência daquilo que faz, tal postura resgata o olhar do espectador. É o que acontece quando lembra como se viu retratado na pintura de Sónia Delaunay ao acordar nele o desejo ou o desconhecido naquela movimentação de círculos. Como percebeu que, pintando directamente com o tubo de tinta pura, Pollock atribuía ao grafismo um vivo colorido, vindo assim acrescentar algo àquilo que ia assimilando. Como fortaleceu o seu juízo sobre o espiritual na arte através do contacto directo com a obra de Kandinsky, onde igualmente o traço predomina delineando cores fortes contrastantes, passando do real para o abstracto ou do complexo à síntese, num jogo atraente de formas geométricas e de cores.
No discorrer sobre o percurso dos últimos vinte anos refere as influências recebidas de Vieira da Silva, pela força do desenho que abstratiza o real reduzindo-o e simplificando-o com excepcional maestria e de Nadir Afonso, pelo dinamismo arquitectural das linhas de cor sobre fundos brancos. E como tais impressões matéricas sobre essa pintura reforçou nele a ideia de que, na paleta, não poderia perder nem o grafismo nem a mancha ao pintar as cenas da sua preferência - a vida, nas suas vertentes diárias no meio urbano, e o amor que na relação amorosa une homem e mulher.
As obras em presença aguçam o olhar do espectador. Imagina-se que a primeira investida do artista face à brancura da tela siga na vertigem do jacto e ocorra com indescritível destreza. Na sua mão os acrílicos são espalhados à-vontade, por fases que se vão decompondo para a obtenção duma poalha irisada, esquecida do esfregar frenético da espátula e do pincel, fixando as cores-vivas em sobreposições e transparências visíveis. Todas as operações subsequentes exigem uma atitude mais demorada e cuidadosa para que, do fundo difuso, se destaque uma grafia do real. Então acontece que da proficuidade cromática da tela emergem aparições surpreendentes e expressivas, que se enovelam numa dinâmica de fuga apelativa à sua perseguição. Ora, tem que ser minuciosa e precisa a construção do desenho que, devolvendo imagens reais, a todo o instante, mudam de rumo!
Pressente-se que Xavier adere intimamente à coisa estética participando directamente na unidade orgânica da cor e do risco, através duma aliança secreta que lhe vem da intimidade que estabelece com a cidade do Porto. Todavia, praças, pontes, barcos, trilhos de carros, aglomerados de gente, rastos dum movimentação intensa e rítmica, revelam-se naquilo que Xavier expõe. Trata-se sem dúvida de uma maneira diferente de pensar a pintura, com a força oculta e temerária da cidade que é desvendada nos fragmentos que a denunciam - a Torre dos Clérigos, a Ponte de D. Luís l, o antigo Palácio de Cristal, o barco rabelo - e dos seus habitantes, gente amorosa e afável. Os elementos gráficos privilegiam a curva, e o estranho movimento de pequenos sinais duma escrita lírica ou duma musicalidade onírica dão corpo à agitação da paisagem urbana. Os fragmentos estruturais dessa entidade ampla que é o borbulhar da cidade deixam-se agarrar pela força anímica da natureza que lhe está subjacente. Mérito para o deslumbramento da cor dominante e do vai-vem seguríssimo dos riscos que vibram na harmonia luminosa do conjunto!
Toda a pintura trepida numa oscilação gritante de sensualidade. Que rodopia em turbilhão, metamorfoseando as leis do equilíbrio, como se um vento tropical atravessasse o campo do visível e desse substância à cor. Sendo assim impossível dissociar a pintura do desenho e este do universo da mancha onde toda a memória do pintor se expande.

Novembro de 1995

Margarida Santos


Os acrílicos do Xavier aproximam-se de um Universo formal, textualizado de linhas de força, e sugerem os dados de uma experiência confrontada de vivências e de realidades. Neste sentido, marcou a sua inconfundível caligrafia de roupagens simbólicas e revestiu de cores exuberantes o humano e o monumental, conferindo-lhe vibrações e dinâmicos teores lumínicos.
Dir-se-ia, numa análise global, que Xavier quis brindar, com o seu cromatismo expressivo, o mundo em que vivemos, tantas vezes alheadas da sua carga espiritual e transparente, bem como da reflexão corporal que se esconde na complexidade das suas estruturas.
Há nesta sua aparente confusão de traços uma harmonia sensível, reflexiva e intencional que se entrelaça, num tratamento exacerbado, no infinito das nossas contradições sugestivas. Os propósitos desta rebuscada procura de grandeza que amarra o homem à terra e à cultura que o viu nascer.
Xavier parece representar, com uma provocação formal e pictórica, a sensualidade dos corpos e a espiritualidade profunda e serena que se adivinha no perfeccionismo de uma estética de assinalada modernidade.
Não é difícil descobrirmos que o pintor serve-se de arquétipos formais de fecunda dinâmica e de traçado firme, como núcleo de uma representação subtil que tem a ver com o nosso quotidiano —- o Ser e a realidade volátil que o cerca. E ao mesmo tempo, como uma espécie de sedução, transmite os símbolos pictóricos de uma gestualidade espontânea, carregados de ênfases texturais.
Na pintura de Xavier assiste-se também a um curioso protagonismo de informações simultâneas, como se o pintor quisesse transpôr para a superfície um dizer energético de interrogações e de inquietantes incertezas.
A composição cromática está enriquecida de estranhos símbolos, predominantes de rotundas formas, como se pretendesse suscitar o tratamento volumétrico da realidade através de uma sensação exotérica do absurdo e do existencial.
Xavier oferece-nos, portanto, uma visão contemporânea de um mundo como sinais de ruptura, onde o Ser se refugia na memória do Amor e da Solidariedade, aguardando serenamente que a ordem natural se restabeleça nas dimensões de um espaço sem tempo, onde possa, finalmente, cumprir o seu destino ontológico

Julho / 1992

Sérgio Mourão

entrada